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Se individualizado, serviço poderá ser cobrado
Se os usuários são indetermináveis (uti universi), de serviço público não se trata.
Tradicionalmente, no direito tributário brasileiro, serviços públicos se caracterizam, entre outros requisitos, se atenderem a usuários determináveis (uti singuli) (artigo 145, II da CF 1988, combinado com os artigos 77 e 79 do Código Tributário Nacional).
Se os usuários são indetermináveis (uti universi), de serviço público não se trata. Como os usuários não podem ser individualizados, tampouco podem remunerar os serviços prestados. Assim, os serviços dessa espécie devem ser remunerados pela arrecadação tributária global do Estado, descaracterizando-os como serviços públicos.
Na mesma linha de consequência, em caso de concessão ou permissão ao particular para o desempenho do serviço, seria impossível ao concessionário auferir sua remuneração diretamente do usuário do serviço.
Vamos explorar a questão mais detalhada. Serviços de fornecimento de água, coleta de esgoto, fornecimento de energia elétrica, gás canalizado são exemplos de serviços uti singuli, pois seus usuários são identificados, cadastrados, seu consumo individual é mensurável e sujeito a cobrança mediante taxas (em caso de ser oferecido pelo Poder Público diretamente) ou tarifas (se prestado por particulares concessionários ou permissionários do Estado).
E quanto aos serviços uti universi, cujos beneficiários são a generalidade da população e não podem ser identificados? Exemplos disso são os serviços de iluminação pública, coleta de lixo, varrição de ruas. A resposta tradicional tem sido a de que tais serviços não podem ser cobrados diretamente dos beneficiários por consumo individualizado e, portanto, devem ser custeados pelo orçamento global do Poder Público. Para muitos autores isso impediria que fossem tidos por serviços públicos.
Isso, porém, não tem impedido que se criem mecanismos jurídicos de individualização dos usuários. Foi o caso da coleta de lixo na cidade de São Paulo, em que se buscou, por Lei Municipal de 2002, individualizar a quantidade de lixo depositada pelos contribuintes, para que se pudesse cobrar uma taxa específica para sua coleta. Criou-se uma declaração de cada contribuinte para especificar a quantidade de lixo depositada nas ruas, estabelecendo-se sobre essa base, um valor a ser cobrado a título de taxa. Durante a gestão seguinte, do prefeito José Serra, a Câmara Municipal de São Paulo suspendeu a exigência do tributo. O Superior Tribunal de Justiça já havia decidido em várias ocasiões ser possível a cobrança de taxa de serviços de coleta de lixo domiciliar, por se considerar presentes nesse tipo de exação os requisitos da divisibilidade e da especificidade (artigos 77 e 79 do Código Tributário Nacional) (RE 137.013, Rel. Min. Demócrito Reinaldo, DJ de 02.08.1999).
O Supremo Tribunal Federal, por sua vez, também reiteradamente havia decidido no mesmo sentido. Na Questão de Ordem em Recurso Extraordinário RE 576.321 RG-QO, o ministro Enrique Lewandowski suscitou a Repercussão Geral para o tema — acolhida pelo Supremo Tribunal Federal — reafirmando que os “serviços de coleta, remoção ou tratamento de lixo ou resíduos provenientes de imóveis, desde que essas atividades sejam completamente dissociadas de outros serviços públicos de limpeza realizados em benefício da população em geral (uti universi) e de forma indivisível, tais como os de conservação e limpeza de logradouros e bens públicos (praças, calçadas, vias, ruas, bueiros)” (RE 576.321, Rel. Min. Enrique Lewandowski, 04.12.2008)
Mais recentemente a Súmula Vinculante 19 assentou que:
“A taxa cobrada exclusivamente em razão dos serviços públicos de coleta, remoção e tratamento ou destinação de lixo ou resíduos provenientes de imóveis, não viola o artigo 145, II, da Constituição Federal.”
Outra solução jurídica foi dada no caso da iluminação pública, que passou a ser objeto de uma nova contribuição com a EC 39/2002 (“artigo 149-A Os Municípios e o Distrito Federal poderão instituir contribuição, na forma das respectivas leis, para o custeio do serviço de iluminação pública, observado o disposto no artigo 150, I e III.”). Já há inclusive um julgado do Supremo Tribunal Federal favorável pretensão do Município de São José (SC) de instituir uma Contribuição para o Custeio dos Serviços de Iluminação Pública (COSIP), com base no permissivo constitucional (RE 573.675).
Nos dois casos, de coleta de lixo e de iluminação pública, por mecanismos jurídicos distintos, transformou-se um serviço uti universi em um serviço uti singuli.
Como se resolve a questão? Os apontados serviços de coleta de lixo e de iluminação pública, tradicionalmente uti universi, não eram serviços públicos e passaram a sê-los nessas cidades durante a vigência das leis municipais que os transformaram em serviços uti singuli?
Para os fins tributários, ser ou não identificável o usuário do serviço tem como repercussões práticas a definição da forma de cobrança do tributo (taxa, imposto ou contribuição) ou da tarifa, a forma de reajuste, a sujeição ao princípio da anterioridade, entre outros aspectos.
Para fins de Direito Econômico, os temas que importam são: o Estado pode prestá-los em regime de privilégio? Pode concedê-los ou permiti-los a particulares? Essas são as repercussões relevantes para o Direito Econômico, e que não são necessariamente as questões que interessam ao Direito Tributário. Para tanto, temos que responder separadamente às duas questões em relação aos dois exemplos dados.
A coleta de lixo passou a constar expressamente da Lei 11.445, de 5 de janeiro de 2007, como parte dos serviços públicos de saneamento básico (artigo 3º, I, “c”: “limpeza urbana e manejo de resíduos sólidos: conjunto de atividades, infra-estruturas e instalações operacionais de coleta, transporte, transbordo, tratamento e destino final do lixo doméstico e do lixo originário da varrição e limpeza de logradouros e vias públicas.”). A Lei diz que “a ação de saneamento executada por meio de soluções individuais, desde que o usuário não dependa de terceiros para operar os serviços, bem como as ações e serviços de saneamento básico de responsabilidade privada, incluindo o manejo de resíduos de responsabilidade do gerador” não constitui serviço público (artigo 5º). E atribui ao poder público a decisão sobre que tipo de lixo “originário de atividades comerciais, industriais e de serviços cuja responsabilidade pelo manejo não seja atribuída ao gerador” pode ser considerado resíduo sólido urbano (artigo 6º). As atividades de manejo de tais resíduos, subdivididas em três categorias distintas (artigo 7º e seus incisos), são submetidas ao regime de serviço público. Portanto, não para fins tributários, mas para fins de Direito Econômico, os titulares dos serviços públicos poderão segregar tais atividades do livre acesso da iniciativa privada. Independentemente da solução que se dê para a cobrança de impostos, taxas, contribuições ou tarifas, são serviços públicos de titularidade do Estado, pois são atividades econômicas desempenhadas em regime de privilégio.
Portanto, a resposta à primeira pergunta típica do Direito Econômico é positiva: sim, o Poder Público pode segregar a atividade de coleta de lixo e tratá-la como um mercado não livre à iniciativa privada. O poder concedente estabelece quais são as atividades exclusivas do Estado e quais podem ser livremente desempenhadas pela livre iniciativa, sempre pautado pela legislação e pela Constituição.
Se eles poderão ser concedidos ou permitidos ao setor privado, respondendo à segunda pergunta, isso vai depender, aí sim, da vontade do Estado de assim proceder e da viabilidade de se cobrar individualmente a tarifa de cada usuário (fato que aproxima circunstancialmente o tema do Direito Econômico do tema de Direito Tributário), pois, sem isso, o delegatário não terá como auferir receita de sua atividade.
É possível, portanto, em nossa opinião, a existência de serviços públicos uti universi que, enquanto não se transformarem em serviços uti singuli, não poderão ser cedidos de forma viável à iniciativa privada. Mas, para todos os demais fins de Direito Econômico, poderão ser tratados como serviços públicos, principalmente no que diz respeito à segregação do acesso ao respectivo mercado para a iniciativa privada.
O mesmo raciocínio será válido para os serviços de iluminação pública. Neste caso, a sustentação da tese que acabamos de descrever encontra subsídios na redação do arigo 149-A CF 1988, que legitima constitucionalmente a individualização do serviço tradicionalmente considerado uti universi. Esse artigo viabiliza não apenas a cobrança individualizada de contribuições, mas a própria concessão ou permissão do serviço à iniciativa privada. E a primeira pergunta de Direito Econômico será respondida da seguinte forma: o Poder Público pode impedir que a iniciativa privada tenha acesso ao mercado de iluminação pública, que permanecerá em regime de privilégio ao Estado até que se delibere a sua eventual concessão ou permissão aos agentes privados. Quanto à segunda pergunta de Direito Econômico, a resposta é: uma vez individualizado o usuário do serviço, é economicamente suscetível de concessão ou permissão, que dependerá, por sua vez, de deliberação do Poder Público e a tramitação de processo licitatório regular.
Portanto, respondendo diretamente à questão formulada acima, para os fins do Direito Econômico, não é relevante para o enquadramento no regime de serviço público se o serviço é divisível ou especializado. Pois essa questão diz respeito apenas a uma parte do regime jurídico aplicável aos serviços públicos. A questão da divisibilidade e da especificidade é fundamental para a caracterização dos serviços públicos para fins tributários, mas não necessariamente para os fins do Direito Econômico.
Para o Direito Econômico, uma atividade pode ser considerada serviço público, reservada ao Estado, vedada ao particular (regime de privilégio), mesmo que seja inviável concedê-la ou permiti-la ao particular por ser indivisível ou não especializada. Para o Direito Tributário, essa mesma atividade pode não configurar serviço público para os fins de cobrança de taxa, se não for divisível nem suscetível de especialização.
O exemplo que resta explorar é o caso da varrição de ruas. Ela está elencada nas hipóteses de serviço público pela Lei 11.445/2007, artigo 3º, I, “c”. Do nosso conhecimento, tal atividade não tem sido cobrada mediante taxa, por não satisfazer aos requisitos dos artigos 77 e 79 do Código Tributário Nacional. Mas se, no futuro, for possível a individualização desses serviços, poderá vir a sê-lo. Para os fins de Direito Econômico, será suficiente que o Estado preste esses serviços em regime de privilégio, negando o acesso livre da iniciativa privada a essa atividade, para que se caracterize como serviço público.
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